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[ sons, imagens e palavras nada recomendáveis, deveras pouco legíveis em telemóveis "inteligentes" ]
Ain't No Sunshine, um original de Bill Withers (em 1971), por Wovenhand (em 2003)
Gostava de contar uma história de “amor” do modo mais simples possível, para não soar a ficção. Trata-se de um relacionamento meio estranho que se foi estabelecendo, desde o seu nascimento, entre mim e uma gata. O «"amor"» pode carregar nos ombros um montão de aspas. Esta gata não. Era mesmo um felino do “sexo oposto”. A mais frágil de uma ninhada de quatro irmãos. Daí que só costumavam restar-lhe as últimas sobras da comida que eu ou a minha mãe distribuíamos, daí ter começado a separar a repartição de comida: primeiro para os três irmãos e, à parte, só para ela.
Bom, tenho quase a certeza que o estupor da gata reparou no meu tratamento preferencial de inspiração algo marxista ou cristã. Certo foi que nas minhas visitas bi ou tri-anuais à cidadezinha natal, mal punha os pés no quintal materno ela saltava sei eu lá donde e vinha miar ou aninhar-se aos meus pés. Nem sempre por comida, quase sempre por afecto, suspeito. Nunca tentei tocar-lhe, o que poderia afugentá-la, tanto para ela se sentir segura perto de mim, como para nunca confiar em humanos.
Tinha um miar muito discreto, extremamente sedutor, simultaneamente baixo e não demasiado agudo, tal como algumas intérpretes da “chanson française” dos anos 50 e 60. Incapaz de falar línguas humanas com animais, pois acho que não devemos humanizá-los, de quando em vez tentava imitar o seu tom e, então, ficávamos largos minutos num diálogo como que com papagaios. Aquela correspondência derretia-me, até por ser rara tal sintonia com humanos. Surpreendido várias vezes neste acto pela minha própria mãe, esta, apesar de pouco dada a ironias, chegava a perguntar: “Então, como é que vai a tua filha?”.
Para o cenário não ficar demasiado idílico, ocorreu um senão. Ao fim de dois anos, estando eu presente, o raio da gata já não deixava os irmãos aproximarem-se da comida. Rosnava e “esmurrava-os” para ser ela a primeira a comer, sim, porque ela, apesar de mais fágil, era “a minha favorita”. Chiça, tal como alguns mais ingénuos adeptos no início de ditaduras do proletariado, logo exterminados pelo cruel pragmatismo de Lenines e Estalines, pensei: “Céus, criei um monstro!”. Irrelevei. Qual deus pagão, segui adiante, pois a gata, apesar da sua natureza felina, continuava a demonstrar uma quase incondicional adoração por mim.
Entretanto, reproduziu-se no quintal vizinho, deserto de inquilinos humanos. Teve um puto loiro, muito assustadiço. Quando lá cheguei, na última Páscoa, estranhei ela preferir a minha companhia à do filho. Bastava abrir a porta do quintal para inalar umas fumaças e logo ela abandonava a cria, vindo ter comigo. E ficava sempre perto, como se tivesse esquecido de ser mãe. Pouco demorou até entender que o interesse pela comida raramente a movia. Oh, os truques que tentei para que ela alimentasse o miúdo convenientemente: dispus pedaços de comida em cima do muro, no próprio quintal, atirei-os para o quintal vizinho, sempre sob o receio de que a sua primeira gravidez não fosse bem-sucedida. Por vezes, ia ao quintal a meio da noite e ela lá estava, demasiado perto de mim, distante do filho, quiçá à minha espera.
Entrementes, no último par de anos, durante as minhas visitas bi-tri-anuais, fui reparando na progressiva diminuição do número de gatos nas redondezas: um perímetro de cerca de 200 x 100mts de quintais no centro da minha cidadezinha natal, onde, apesar de cercados por ruas movimentadas, sempre houve umas duas dúzias de gatos bastantes para animar a paisagem vegetal. Haverá quem prefira Xanax. Para obter o mesmo efeito, sempre me bastou observar, a uma distância confortável para os mais fragéis, quer no quintal materno ou na BBC Wild Life, alguma harmónica diversidade entre a vida vegetal, animal e humana.
Cheguei a suspeitar de alguma velha maluca, avessa a felinos – há sempre demasiadas em cidadezinhas tradicionais -, que andasse a envenenar a comida da gataria. Este Novembro descobri a verdade: há realmente uma velhota por perto, que, decerto com a melhor das intenções, foi construindo um abrigo para gatos. Coercivamente ou seduzindo-os com comida, apreendeu-os num recinto fechado. Faz-me alguma impressão o seu acto.
Remeto-me para as notícias recentes sobre a Segurança Social britânica ter retirado a custódia dos filhos a famílias com dificuldades em sê-lo. Cada caso é um caso, diz-se. Será que em todos, quando por razões sobretudo economicistas, é preferível separar os filhos de suas mães? Duvido. De volta aos gatos, as minhas razões? 1º, pela sua capacidade de improviso, suponho ser raro algum gato morrer de fome; 2º, os animais e os humanos mais selvagens não devem ser aprisionados, nem sequer humanizados a troco de comida; 3º, estes quintais, agora só habitados por vegetais, ficaram deveras aborrecidos. Já nem lá vou fumar tanto.
Acho que conheço os gatos. Se a comida e as grades forem bastantes, não consigo imaginar esta gata a morrer de saudades de mim. A mal dizer, não imagino nenhum ser vivo com saudades de mim. Suponho que a maior parte confunde a minha ausência quase budista em incomodar seja quem for com a mais cruel indiferença. Bom, se bem que a uma distância quase felina, ainda persisto atento ao que vai por perto e por longe. Peço desculpa por um post tão básico, mas precisei dizer isto. Sinto saudade de um 'amor' quase sem aspas.
Oeiras, Agosto 2012 / Gaspard de la Nuit, de Maurice Ravel (salvo erro, em 1909), por Ivo Pogorelich (salvo erro, em 1983)
What is the late November doing
With the disturbance of the spring
And creatures of the summer heat,
And snowdrops writhing under feet
And hollyhocks that aim too high
Red into grey and tumble down
Late roses filled with early snow?
Thunder rolled by the rolling stars
Simulates triumphal cars
Deployed in constellated wars
Scorpion fights against the Sun
Until the Sun and Moon go down
Comets weep and Leonids fly
Hunt the heavens and the Plains
Whirled in a vortex that shall bring
The world to that destructive fire
Which burns before the ice-cap reigns.
T.S. Eliot (excerto de The Four Quartets)
La lugubre gondola II, de F. Lizt, em 1882, por Božo Paradžik & Maria Sofianska, em 2013
As minhas tias ainda me tratam por "Zezé".
La lugubre gondola I, de F. Lizt, em 1882, por Božo Paradžik & Hansjacob Stämmler, em 2015
El padre de turbante
y denso bigote negro
con los brazos cruzados
A la izquierda su esposa
con abaya bordada
y velo blanco
Ahmad y Zainab
los dos hijos pequeños
tomados de la mano
Los abuelos sentados
en un sillón de mimbre
Todos ellos sonriendo
desde una foto a medio chamuscar
hallada entre los escombros
de su casa
después del bombardeo
*
Padres blancos y rubios
y de ojos azules
visitan Disneylandia con sus hijos
de rasgos árabes o asiáticos
Bombardean Hanoi
Bombardean Bagdad
Bombardean Kabul
Pero ellos son piadosos
y adoptan a los huérfanos
A verdade - bom, a minha - é que por mais que eu tente driblar a desilusão com momentos de inócua esperança, mais de metade dos meus contemporâneos mostram-se desprovidos do meu menor interesse - isto para não os apelidar de idiotas, o que seria grosseiro, ou desinformados, o que seria um eufemismo. A verdade colectiva é que, para sobreviverem, qualquer indivíduo ou sociedade precisam de um mínimo de 50+1% de gente próxima digna de interesse. Bolas, sinto-me pessimista. Isto não está fácil. Até suspeito que a maior parte das pessoas, tal como eu, se sente rodeada de gente, hum, difícil. O meu mais autêntico desejo? A melhor das sortes para quem não tiver o mínimo jeito para fintar o Presente.
Indícios?, por demais
um tremendo cansaço
de coisas feias, e daí
sons, diversos traços
caracteres alguns
de um rasto só
Algum tempo:
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Algumas pessoas:
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Outros que, no exacto antípoda dos anteriores, despertam o pior de mim:
Demasiados. Não cabem aqui. É tudo gente discursivamente feia. Acendendo a TV ou ouvindo quem fora dela reproduz agendas mediáticas, entre o vómito e o tédio a lista tornar-se-ia insuportavelmente longa.
Uma chave, mais um chavão? A cultura popular do início deste séc. XXI fede !
joseqcarvalho@sapo.pt
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