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Sobre canela e abóboras

por JQ, em 13.12.13

Dizem-me que Henri Meschonnic (apelido deveras real, que lamento não ter sido inventado por mim) terá dito, em 1975, no seu livro Le Signe et le Poème-essai:  “Si la parole parlée est absence, la parole écrite est l’absence d’une absence. Le sens est un absent. Nous ne sommes alors qu’une agitation enfermée dans l’absence, puisqu’un signe renvoie à des signes, toujours qu’a des signes”.

 

Nada mais actual, conceda-se. Quase todos isso dando fomos de barato na suspeita de que fosse exactamente esse o adjectivo preço da realidade e, no entanto, é como quem diz (o Sr. Herberto Helder, por ex.): “não tentámos criar abóboras com a palavra «abóbora»”.

 

Quanto a mim, pelo menos na sua faceta mais próxima da beleza por alcançar, a ilusão sempre importou não só em cada humana subvivência; até na crisálida que almeja ser borboleta; na raiz que deseja o caule, neste que sonha a flor; talvez mesmo na paciente rocha, que espera inimigos ventos para se tornar areia sempre carente do afago das marés.

 

É, és, sou, fomos. A ilusão sempre importou. Se agora quase nunca, aponte-se o dedo para os últimos séculos, para o frenético galope  da modernidade e suas indústrias, para a desconstrução nela inclusa ou, pior ainda, para o cinismo e a indiferença residentes no coração da pós-modernidade ainda reinante. Relembre-se Emil Cioran, esse desgraçado aforista, bem útil durante o optimismo pimba dos anos 50 do século passado. Chegou ele a dizer “Que haja uma realidade escondida atrás de aparências é, afinal, bastante possível; que a linguagem possa revelar tal coisa é uma esperança absurda. "Emílio, vai-te foder só ou acompanhado! Se bem que aparentemente lúcida, a tua razão não me importa, pois nada semeia. Não passas de um eucalipto que dificulta a nascente dos mais diversos futuros. 

 

E assim voltamos ao diktat do Sr. Helder “não tentámos criar abóboras com a palavra «abóbora»”, o que é uma pena, por se tratar de um fruto redondo, bonito quiçá, servindo a cor e o paladar de belas sopas e gringos festejos além-mar; pena maior, ainda, o número decrescente dos crédulos na desejável promiscuidade entre o dizer e o acontecer.

 

Note-se, ou nem isso: esta manhã – encontrava-me eu em sempre diligente serviço numa mercearia do Olivais – quando uma rapariga, com um ar algo fragilizado pela pobreza evidente, nela entrou e simplesmente disse “Canela!”, num tom absolutamente certo diante da acústica em redor.  

A minha imaginação, como todas, sobrevive entre limites sempre movediços, mas poderia jurar ter presenciado um momento em que o Tempo absolutamente parou, em que tudo naquela mercearia ficou coberto de um castanho bonito; e todos, naquela mercearia, nos sentimos bons, dentro e fora submersos por um pó castanho-dourado que caía do tecto, ressoava das paredes e a todos cobria de um estranho encanto.

 

O facto de o desajeitado merceeiro, sobrerepticiamente, ter servido a rapariga com meia dúzia saquetas de plástico repletos de um pó castanho - sim, esse sempre útil para preservar a miséria dos mais pobres -, não bastou para destruir a minha pintura algo dourada pela ilusão. Fechei os olhos, pois esse real estupor já não me interessa.

 

Creia-se ou não, já existe demasiado pessimismo em redor; por toda a parte pululam apocalípticos profetas, emparedados na sua lucidez com muitas aspas. Para essa missa semi-gótica já dei o que tinha e o que não. Repito: quero que o presente se foda em pedacinhos! O presente nunca existiu além de um instante. Continuam precisas sombras do futuro no passado, vice-versas e versos-vício, de reversos capazes de fintar o peso deste Tempo demasiado actual.

 

Mas para quê deprimir os por demais deprimidos? Para se sentirem ainda mais impotentes? Até Lou Reed, um céptico e cínico do piorio, sobrevivente de uma infância vivida num optimismo bacoco, chegou a cantar: “I’m set free to find the new illusion”. Sem algo disso, um território minimamente saudável para o sonho, além de nós, por demais tristes contemporâneos, não haverá qualquer futuro.

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